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Adriana Arruda - Publicado em 28-04-2021 10:50
Economia Solidária promove inclusão de pessoas em sofrimento psíquico
Materiais confeccionados com papel reciclado pelo Recriart (Imagem: Edgar Fabricio e NuMI-EcoSol)
Materiais confeccionados com papel reciclado pelo Recriart (Imagem: Edgar Fabricio e NuMI-EcoSol)
Recriart é um empreendimento de Economia Solidária fundado há 15 anos em São Carlos (SP), formado por pessoas em sofrimento psíquico. Suas principais atividades são a confecção de papel reciclado e desenvolvimento de produtos de papelaria como pastas, cadernos, agendas, marcadores de livros e porta-retratos. Uma pesquisa desenvolvida junto aos integrantes do empreendimento evidenciou que, mais importante que a renda, a oportunidade de trabalhar, o sentimento de pertencimento à comunidade e a retomada de relações sociais são resultados que emergem dessa participação.

O trabalho é um direito de todas as pessoas, mas nem sempre é visto dessa forma, especialmente para pessoas em vulnerabilidade social. Desde o início da década de 1980, com o surgimento do movimento de Reforma Psiquiátrica brasileiro, o acesso ao mundo do trabalho no campo da Saúde Mental passa a ser mais amplamente debatido. O movimento busca, em oposição a modelos manicomiais violentos e excludentes, construir novas possibilidades que garantam cidadania e respeitos aos direitos e individualidades de pessoas em sofrimento psíquico.

É nesse contexto que Saúde Mental se aproxima da Economia Solidária, com o surgimento de empreendimentos econômicos solidários voltados aos usuários de serviços de saúde mental. É o caso do Recriart, nascido da parceria entre o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do Município e o Núcleo Multidisciplinar e Integrado de Estudos, Formação e Intervenção em Economia Solidária (NuMI-EcoSol) da UFSCar.

Composto por cerca de 20 trabalhadores com experiência de sofrimento psíquico intenso, o empreendimento visa a inclusão social pelo trabalho dessa população, em sua maioria usuária do Caps.

"Na economia capitalista, essas pessoas são totalmente excluídas do mundo do trabalho, principalmente pelas exigências relacionadas a carga horária, produtividade e rendimento. Muitas delas, inclusive, adoeceram nesse ambiente competitivo e explorador, não tendo interesse em voltar para algo tão esmagador. Por outro lado, essa população tem conseguido acesso ao trabalho por meio da Economia Solidária, especialmente por suas características mais éticas, humanas e solidárias, contradizendo veementemente o sistema capitalista", explica a terapeuta ocupacional Lisabelle Mazaro.

Mazaro é autora da tese de doutorado intitulada "Histórias de vida de pessoas em sofrimento psíquico sobre a inclusão no trabalho na perspectiva da Economia Solidária: Ecologia de Saberes revelando que Recriart é preciso", defendida em fevereiro de 2021 no Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional (PPGTO) da UFSCar, sob orientação de Isabela Ap. de Oliveira Lussi, docente no Departamento de Terapia Ocupacional (DTO) da Universidade.

Inclusão social pelo trabalho
Em sua pesquisa, Mazaro buscou compreender como os integrantes do Recriart percebem os impactos da vivência nesse espaço de trabalho em suas trajetórias de vida. Para isso, passou oito meses em imersão no campo, acompanhando o dia a dia do empreendimento, a rotina do grupo, as assembleias e a comercialização dos produtos tanto em feiras quanto em outros espaços conquistados, produzindo assim um rico diário de campo. Também realizou entrevistas com parte dos membros do grupo, a fim de delinear suas histórias de vida.

A pesquisadora explica que, para ingressar no Recriart, o primeiro passo é manifestar o interesse em trabalhar e, em seguida, há o encaminhamento por algum equipamento de assistência à saúde do Município. Caso haja vagas (algo que depende dos acordos realizados pelo grupo nas assembleias e da capacidade do espaço físico), a pessoa interessada é apresentada ao empreendimento e, havendo interesse e motivação para ingressar no grupo, já pode participar.

"Na Economia Solidária, não há patrão e empregados, nem hierarquias e cargos; não há também contrato de trabalho e não é necessário período de experiência. A principal característica da Economia Solidária é a autogestão, que significa dizer que a responsabilidade pelo empreendimento repousa igualmente sobre todos os membros e todas as decisões são democráticas, horizontais e coletivas", registra Mazaro.

Pesquisa
A análise realizada para a tese de doutorado foi embasada nas sociologias das ausências e das emergências e na ecologia de saberes, referencial teórico-filosófico desenvolvido pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Essas teorias, segundo Mazaro, reconhecem a existência de uma pluralidade de formas de conhecimento e trazem reflexões sobre inclusão social de pessoas que foram invisibilizadas durante longos anos.

Com isso, a pesquisadora identificou que a experiência de trabalho no Recriart proporciona inclusão social em seu sentido mais amplo, extrapolando as relações de trabalho. "Eles relataram ganhos em vários aspectos, como por exemplo o acesso a espaços públicos antes não explorados, o sentimento de pertencimento a um grupo, o acesso ao mundo de trocas - tanto econômicas como afetivas-, o aumento dos vínculos sociais e, acima de tudo, a oportunidade de exercerem seus direitos e cidadania", relata Mazaro.

Na Economia Solidária, os trabalhadores não recebem salário; há a retirada, que varia conforme a receita obtida. No caso específico do Recriart, o valor das retiradas é ainda pequeno, mas ainda assim há pessoas que participam do empreendimento há 15 anos. Isso mostra que os ganhos e o interesse em continuar estão para além do retorno financeiro. As maiores conquistas, que asseguram a permanência, são justamente aquelas não materiais, tais como o sentimento de pertencimento e a retomada de relações sociais. "Com a inclusão no trabalho, as pessoas recuperam a identificação de suas capacidades, que sempre existiram, mas que foram invisibilizadas e anuladas durante um período para a maior parte delas. O fato de terem suas falas e opiniões ouvidas e consideradas tem um valor não mensurável", reforça Lussi.

Desafios
As pesquisadoras destacam dois entre os principais desafios do processo de consolidação de empreendimentos de Economia Solidária no campo da Saúde Mental: a falta de arcabouço jurídico que beneficie a formalização desses grupos e a consolidação de políticas públicas.

A incompatibilidade entre as políticas de previdência social e as de inclusão social pelo trabalho é um entrave relacionado à regulamentação, pois quem recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC) - benefício da assistência social - não pode exercer nenhum tipo de atividade de trabalho, o que leva as pessoas em sofrimento psíquico a terem medo de perdê-lo pela participação no empreendimento. "A nossa luta é para que a legislação possa garantir que as pessoas em sofrimento psíquico que atuam em empreendimentos de Economia Solidária ainda tenham um tempo para continuar recebendo o BPC, até que a sua situação econômica seja, pelo menos, compatível com esse benefício", explica Lussi.

Já a criação de políticas públicas é urgente por dois motivos principais: para garantir o direito ao trabalho autogestionário a pessoas em sofrimento psíquico, reconhecendo a importância disso, e para auxiliar no fortalecimento do movimento da Economia Solidária no País. "Os empreendimentos enfrentam muitas dificuldades, especialmente nos últimos anos, em que retrocedemos nas políticas públicas sobre Saúde Mental, no geral, e sobre Saúde Mental e Economia Solidária, em particular, e, também, com a constante diminuição de recursos. A força e as articulações dos movimentos da Economia Solidária e da Saúde Mental tornam possível a existência, a persistência e a resistência", finaliza Lussi.